segunda-feira, 29 de julho de 2013

Marcha das Vadias: uma vida de silêncio forçado, um grito ensurdecedor.

Tape os ouvidos. Ele será cada vez mais alto. Marcha das Vadias só parece cruel e escrachado, por que aponta a crueldade de forma escrachada. E desculpa avisar moralista, mas a crueldade é feia. Muito mais do que as vadias, segundo o seu padrão arbitrário de beleza, usado como argumento para deslegitimar uma causa política. 

O porquê da Marcha das Vadias ser necessária? 

Porque o machismo está em absolutamente todos os setores sociais, ideológicos e acredito que todas as culturas. Estava na Marcha das Vadias, em Copacabana, no dia 27/07. A marcha concentrou as 13h, e durou por completo, com revezamento de grupos, até umas 23h. Por volta das 20h fomos impedidos de nos aproximar da jmj por um cordão do exército e ficamos agrupados na praia. Nesse momento percebi um grupo de meninos num estilo Cone Crew, que ficavam constantemente arroizando as mulheres. Até aí tudo bem, era levemente incomodo, mas eles estavam juntos com a marcha e apoiavam e gritavam as palavras de ordem das vadias, em defesa da autonomia da mulher sobre seu corpo. 

Não sei quando, nem porque, o cordão do Exército afrouxou, e a Marcha adentrou Copacabana, onde pessoas do evento católico estavam em grande quantidade. Os gritos eram pela legalização do aborto, pela separação Estado e fé, pelos gastos públicos com o evento religioso, pela autonomia feminina, pelos direitos lgbts, pelo fim da Polícia Militar, pela saída do Cabral, pelo fim da violência policial que assassina nas favelas, contra momentos históricos de extermínio de povos e culturas pela Instituição e PASMEM, por valores que Cristo também pregou - AMOR. 

Infelizmente a hostilidade foi inevitável, e fundamentalistas moralistas horrorizados com peitos femininos desnudos e beijos e trocas de afeto entre pessoas do mesmo sexo, resolveram oprimir gritos por liberdade com rezas, insinuando que manifestantes estariam possuídos por Satanás, já que pregavam liberdade sexual, prazeres carnais, direito de escolha... A manifestação respondeu com a falta de respeito mais do que legítima por uma instituição que massacrou tudo que considerou anti-paroquial e uma afronta a moral e aos bons costumes cristãos na história da humanidade. Os manifestantes gritavam "vou morrer na inquisição" porque assim seria se esta fosse nos dias de hoje. E assim ainda é, de forma velada, tendo em vista a dura perseguição pessoas que os performers da marcha estão sofrendo, a violência aos lgbts, a violência contra a mulher e o extermínio de povos indígenas e de terreiro... e por aí vai. 

Durante  a marcha, para além do confronto peregrinos x manifestantes, muitas cenas foram emblemáticas para caracterizar a necessidade dos gritos da Marcha. Um senhor passou de bicicleta e gritou para o cordão policial "METE A PORRADA NESSES VIADO E NESSAS PIRANHAS", e vi ele sendo aplaudido e arrancando risos dos policiais, inclusive mulheres. Em um momento da Marcha precisei parar em uma padaria para comer, e a marcha passou. Quando corria atrás dela com minha amiga Anaterra, as duas mulheres, sozinhas, com nossas roupas de vadias (alias, somos ambas atrizes, profissão que sempre gosto de lembrar, até anteontem era vista exatamente como PUTA pela sociedade) e batons vermelhos, fomos, as duas que minutos antes gritávamos no amparo da multidão por direito de ir e vir, de se vestir como quiser, contra a violência sexual e a objetificação da mulher, ABSURDAMENTE invadidas por abordagens agressivas em quanto caminhávamos. Dessa vez sozinha, os gritos que em grupo eram vomitados, e abraçados, tornando-os possíveis e seguros, foram calados, e deram lugar ao medo, e a necessidade de correr, para novamente podermos gritar a liberdade sobre nossos corpos. 

É óbvio que ouviríamos que não poderíamos estar ali, sozinhas, vestidas como estávamos, se falássemos sobre isso. A sociedade ensina a mulher a não ser estuprada, porque se ela não cumprir esses ensinamentos, não poderá reclamar quando acontecer. Outro, e talvez o maior dos emblemas para mim foi quando, ao fim da marcha, os "meninos Cone Crew" que flertavam incessantemente, mas gritavam palavras junto conosco, nos ofereceram pipoca. Em um momento de exaustão, depois de 10 horas de marcha, com fome e sede, perguntei para um deles se havia acabado a pipoca que nos ofereceram. A resposta que tive que ouvir me pareceu uma mentira, uma brincadeira de mal gosto - e de fato foi- mas que não parecia real, dado o contexto. Ele, que estava acompanhando toda a marcha feminista, me respondeu "minha pipoca têm LSD, estou drogando vocês vadias para me aproveitar". 

Com a dispersão da marcha, e sem os meus amigos próximos, tendo em vista que tinha me afastado deles para me dirigir a esse menino, considerando-o um companheiro de luta, não consegui reagir a fala dele. Dizer que fui tomada por medo seria muito vitimista, mas certamente fiquei surpresa e horrorizada com uma brincadeira sobre estupro ALI. Mais uma vez na vida,me senti incapaz de responder, e após o comentário de teor agressivo, silenciei. Depois de 10 horas de grito, me vi novamente calada. Naqueles gritos e atos, estava todo o silêncio diário, sufocado. Que não nos deixa respirar tantas e tantas vezes ao longo da vida. Que nos deprime, que nos apaga, que nos excluí, que nos recolhe em casa, que nos tira o direito de nos pertencer, que nos tira o direito de escolher, que nos reprime e amedronta se tentarmos ser livres, que nos "coloca no nosso lugar", que diz qual é nosso lugar, aonde devemos ficar e aonde não devemos ir. O que pode acontecer se desafiarmos essa ordem social. 

Naqueles gritos estavam toda a dor direta e indireta, pessoal e histórica, que nos fizeram sofrer simplesmente por sermos mulheres. Uma em cada 4 mulheres que você conhece vai ser agredida ao longo da vida. Então agora pare e despragmatize essa informação! Faça o exercício doloroso de pensar em 4 mulheres conhecidas, e pensa que no mínimo 1 delas já foi agredida POR SER MULHER. Não estamos falando de violência como a que todos estão vulneráveis. Nessa estática não entra TODA violência contra uma mulher, mas toda violência cometida contra uma mulher por ela ser mulher. Sacou a diferença? O corte de gênero? 

Sério, se você tem empatia e solidariedade nesse coração, mas ainda questiona as necessidades do movimento feminista, sugiro que pesquise e reflita sobre isso. Eu já fui violentada, e ao abrir isso fui despragmatizando as estáticas, descobrindo a quantidade de companheiras, de amigas, de pessoas da família que passaram por experiências similares. E essa quantidade é absurdamente maior do que o silêncio das mulheres, envergonhadas e culpabilizadas pela violência, pode te permitir ter acesso. Mas estranhamente, é nessa compreensão enraizada, nessa conexão através da dor, que nos amparamos, e nos fortalecemos. E decidimos apaziguar os medos umas das outras, e torna-los combustível de luta. Fazer do silêncio lancinante o grito que corta as almas, os corações e os paradigmas sociais. Juntas vamos ocupar todos os espaços que nos foram impedidos, vamos cuspir tudo aquilo que nos forçaram a engolir, vamos reverter em coragem, todo o medo que nos impuseram. E saiam da frente. Porque essa passagem vai ser forte. E vai doer. Em nós e em todos. Mas vai transformar. 

Por último gostaria de lançar a ideia que tenho, de que todos aqueles que agora espumam de raiva e moralismo diante da performance que quebrou imagens e insinuou sexo com objetos religiosos, pedindo a crucifixão dos responsáveis, certamente estavam e estariam na praça para ver as bruxas, os ciganos, os ateus, os diferentes e os que contestam sendo queimados, enforcados, guilhotinados. Fizeram e fariam isso em clima de festa. Celebraram e celebrariam a inquisição. E sem dúvida alguma, são os mesmos que pediram e celebraram a morte de Cristo. Afinal, Cristo foi contestador e libertário, e isso é absolutamente proibido para estas pessoas. 

Fundamentalista ignorante e opressor, ao apontar a violência de Estado, a opressão institucional, a mercantilização da fé, a corrupção do homem e até ao beijar outra mulher, estou muito, muito mais perto de Jesus do que você. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário